segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A escrita de nós dois

Não sei se o que me une a você são elementos coesivos ou corrosivos. Você está tão dentro de mim e tão distante: não falamos a mesma língua, o registro é mal empregado, mas dividimos a incoerência de um mesmo sentimento. Não nos classificamos em todas as classes de palavras e os adjetivos pelos quais me descreve soam ruins, derivados de formas de ser exteriores, mal ditas. Não me flexiono inteira a você, pois não sou verbo regular, falo de modo direto ou indireto, dependendo da ocasião. Mas você inflexível, impessoal, intransitivo, nunca me alcança, nunca me entende, nunca se desdobra por mim. Sei que às vezes sou tola, excessivamente gramatical, me ateio a pequenas coisas, a simples preposições, à colocação de um adjetivo inesperado: _ Chata! E eu rebato em grau superlativo, para manter o tom melodramático: "Você que é muito chato!". Infantis, monossilábicos, descritivos como todos os seres apaixonados. Porém, nós nos amamos com intensidade, como em uma locução adverbial: Muito! Muito! Muito! Enfim, temos muitos hiatos, muitas elipses, muitas palavras não ditas. Culpa desse seu jeito metonímico, oculto, indeterminado. Você nunca me diz realmente o que é; o que sente; o que vê. São vírgulas, atrás de vírgulas, e depois apostos, explicações e abraços. Vivemos dias de céu e dias de purgatório, metaforicamente denominados de semanas. E muitas, longas reticências. Ainda assim, espero nunca haver um ponto final.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Autopsicografia

Ela não sabia como e nem o porquê.
Sabia apenas que as palavras brotavam de sua mente, como a água que brota nua da terra e corre o mais rápido possível até se lançar lânguida aos braços do mar.
Vivia hostilizada pela arrogância das horas e pelo desprezo do pragmatismo. Alheia a tudo e tão dentro das entranhas da vida, ela pulsava de par em par. Dentro, crescia. Fora, agonia.
Olhava o dia e ele dizia: "Trabalho!". Olhava a noite e ela dizia: "Viva!". Ficava perplexa diante do paradoxo em que vivia, mas vivia intensamente, e não raramente estava cansada.

A Casa

    O problema era a casa. Amorfa, rija, tênue, esperava sempre algo em troca. Sempre subsistia. Os abraços, porém, transbordavam. Eram livres e poderiam voar para muito além do horizonte, mas a casa, fincada no chão, prendia tudo com enormes estacas de madeira podre. E exigia muito: a limpeza constante, as lembranças que rasgavam a memória, o pó atrás das têmporas. Era um cansaço mórbido, morno e inundava tudo como um manto invisível.
    Já se vão dias e a casa permanece no mesmo lugar, respirando com dificuldade a insistência das horas. Não fosse o mármore; não fosse a incredulidade do concreto, a casa seria livre e os móveis dançariam boquiabertos como a valsa dos índios tupinambás no solstício de verão.
    Mas já é tarde. E o vento que bradava nas janelas e portas reclamando sua passagem migrou para o sul, para paragens mais amenas. O que resta agora são pedaços de existência, retalhos de vida guardados no caos do armário, ao abrigo da dureza da luz do dia.
    Ainda assim, vez em quando, um passarinho assoma à janela e pousa em seu ombro desavisado. Um estremecer de vida selvagem então, repentinamente, se desprende, e a casa, assustada, lembra de quando era barro, união amorosa de areia e pedra. De quando era rústica, simples e feliz, como deveria ser.