quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Autopsicografia

Ela não sabia como e nem o porquê.
Sabia apenas que as palavras brotavam de sua mente, como a água que brota nua da terra e corre o mais rápido possível até se lançar lânguida aos braços do mar.
Vivia hostilizada pela arrogância das horas e pelo desprezo do pragmatismo. Alheia a tudo e tão dentro das entranhas da vida, ela pulsava de par em par. Dentro, crescia. Fora, agonia.
Olhava o dia e ele dizia: "Trabalho!". Olhava a noite e ela dizia: "Viva!". Ficava perplexa diante do paradoxo em que vivia, mas vivia intensamente, e não raramente estava cansada.

A Casa

    O problema era a casa. Amorfa, rija, tênue, esperava sempre algo em troca. Sempre subsistia. Os abraços, porém, transbordavam. Eram livres e poderiam voar para muito além do horizonte, mas a casa, fincada no chão, prendia tudo com enormes estacas de madeira podre. E exigia muito: a limpeza constante, as lembranças que rasgavam a memória, o pó atrás das têmporas. Era um cansaço mórbido, morno e inundava tudo como um manto invisível.
    Já se vão dias e a casa permanece no mesmo lugar, respirando com dificuldade a insistência das horas. Não fosse o mármore; não fosse a incredulidade do concreto, a casa seria livre e os móveis dançariam boquiabertos como a valsa dos índios tupinambás no solstício de verão.
    Mas já é tarde. E o vento que bradava nas janelas e portas reclamando sua passagem migrou para o sul, para paragens mais amenas. O que resta agora são pedaços de existência, retalhos de vida guardados no caos do armário, ao abrigo da dureza da luz do dia.
    Ainda assim, vez em quando, um passarinho assoma à janela e pousa em seu ombro desavisado. Um estremecer de vida selvagem então, repentinamente, se desprende, e a casa, assustada, lembra de quando era barro, união amorosa de areia e pedra. De quando era rústica, simples e feliz, como deveria ser.